Tenho recebido, com certa frequência, diversas mensagens de pessoas que dizem querer aprofundar-se na prática e nos conhecimentos sobre Budismo ou Zen Budismo.
É bastante curioso que, ao mesmo tempo, percebo que as pessoas não estão preparadas para realmente se comprometerem com os estudos e, sobretudo, com a prática que isso exige.
No Budismo, costumamos dizer que existem três joias – ou três tesouros –, a saber, o Buddha (no caso, Shakyamuni Buddha, o Buda histórico), o Dharma (a doutrina budista) e a Sangha (a comunidade de praticantes). Não há relação hierárquica entre elas. As três são igualmente importantes e complementares.
Recentemente, verificando as fichas de cadastro que preenchemos em nossa Comunidade quando alguém nos visita pela primeira vez, deparei-me com cerca de 150 fichas que temos, desde que iniciamos essa prática de cadastro. Cento e cinquenta fichas... Ou seja, ao menos cento e cinquenta pessoas passaram por nossa Comunidade ao longo de um ano de cadastro... Foi bem mais que isso, se pensarmos na história da Comunidade como um todo, e considerarmos o tempo em que não tínhamos, esse controle. E, dessas 150 pessoas cadastradas, nem 10% se mantêm praticando...
Claro! Muitos vieram conhecer as práticas do Zen, apenas. A curiosidade os movia. E não há mal algum nisso! Nossa proposta é mesmo estarmos abertos a acolher igualmente a todos que aqui venham, seja por interesse na prática, seja por mera curiosidade.
O interessante a se verificar é que, dentre tantos nomes – de alguns, lamentavelmente, eu sequer recordo as fisionomias ou de quem se trata – muitos chegaram até nós dizendo querer verdadeiramente praticar o Caminho de Buda.
Vinham e praticavam por algum tempo e, pouco depois, desapareciam... Deixavam de praticar...
O Zen é uma prática enfadonha?
A mesmice da prática os espanta?
O que esperavam encontrar com essa prática?
Essas e outras perguntas me ocorrem e, em verdade, creio já ter algumas respostas possíveis para elas...
Praticar o Zen é adentrar, antes de mais nada, no âmago de nossas questões internas. É, mais do que lermos os diversos livros sobre o tema, lermos o grande livro de nosso próprio ser, de nossa existência.
E talvez seja este o grande incômodo da prática; mais até que as dores e desconfortos da postura física.
Até que ponto queremos saber quem verdadeiramente somos? Até que ponto queremos entrar em contato com aquilo que, em nós, reprovamos ou que nos é desagradável?
“Não... não foi isso que vim buscar aqui! Estou à procura de uma experiência verdadeiramente mística e transcendental! Ficar sentado em uma almofada preta, com as pernas formigando, voltado para uma parede branca, observando minha respiração, minha postura e os pensamentos e sentimentos que passam pela minha mente, definitivamente não condiz com aquilo que eu espero de uma prática espiritual”.
“Ué? Cadê os mantras que devemos entoar durante a prática meditativa???”
É... O Zen não nos oferece nenhuma grande epifania ou revelação suprema! Aliás, não nos oferece nada...
Então, para que praticamos?
Qual o intuito de praticarmos?
Para que serve?
Para nada!
Sim... para absolutamente nada... essa é a grande verdade que tantos mestres – dentre eles, Bodhidharma – já nos anunciavam desde tempos remotos...
Ora! – você poderá perguntar – Então voltamos à primeira questão: Qual o sentido dessa prática?
Nenhum... Não há sentido algum...
Nada a se buscar... nada a se ganhar...
Em nossa sociedade, essa é uma prática absolutamente irrelevante, portanto!
O Zen não atende à lógica utilitarista.
O Zen não atende à lógica alguma que não à sua própria.
Talvez por esta razão, tão poucos se mantêm em prática...
Poucas pessoas perceberam que o Zen não segue à lógica da utilidade...
Ou, eventualmente, mais pessoas do que suponho tenham compreendido isso mas talvez, não tenham encontrado uma maneira de ausentar-se dessa lógica, vigente em nosso mundo e, portanto, no jogo das eleições de prioridades da vida, a prática do Zen perde “de virada” para as demais atividades. Algumas bem mais interessantes, mais aprazíveis ou... mais importantes!?
“Hoje não posso... preciso ficar com minha família”.
“Hoje não dá... tenho muito trabalho”.
“Hoje não poderei ir... estou muito cansado”.
“Hoje já tenho outro compromisso”.
“Hoje, alguns parentes distantes vêm me visitar... Tenho que estar com eles... não posso ausentar-me”.
“Minha companheira– ou companheiro – não gosta que eu vá”.
“Não irei, pois tenho que estudar”.
“Não consigo acordar cedo”.
E assim por diante...
É claro que não se espera que um praticante do Zen Budismo tenha o mesmo grau de entrega e dedicação dos monásticos. Se assim fosse, eles tornar-se-iam monges e monjas... Mas o que tenho observado nesses anos de prática e de Comunidade é que a maioria das pessoas busca o Zen em benefício próprio e, tendo – ou não – alcançado seus objetivos imediatos com essa prática, desligam-se dela e da Comunidade. Ou seja, esquecem-se que, quer sejamos monges ou leigos, quando nos autodenominamos “Budistas”, assumimos um compromisso para com todos os seres. Ou seja, assumimos o compromisso de trilhar o “Caminho do Boddhisatva” – daquele que se doa para salvar outros seres... Todos eles!
Esse doar-se é o que caracteriza um Buddha ou um Boddhisatva.
Para doarmos algo, temos que abrir mão de algumas coisas, não é? Afinal, se pensarmos em um bem material, não é difícil observar que não é possível doá-lo a alguém e manter consigo aquilo que se doou. Porém, quando falamos em doar enquanto “prestar um serviço”, enquanto oferecermo-nos em serviço de outrem, ou em colocarmo-nos à disposição de outros seres, tornamo-nos um caminho, um veículo, um meio para que outros realizem aquilo que nos propomos a ajudá-lo a trilhar.
Tal como um professor, numa escola, que só conseguirá ensinar algo a seus alunos, se for capaz de tornar-se esse caminho, esse instrumento – ele mesmo – de aprendizagem. Apenas se conseguir tornar-se capaz de dividir aquilo que aprendeu com outros que, antes dele, também ofereceram-se a esse serviço.
Mas, não é curioso constatar que esse tipo de doação não nos tira aquilo que doamos?! Ou seja, há sim certas coisas que podemos doar sem nada perder e, em verdade, com muito a ganhar. Não em troca daquilo que se doou, mas como consequência da abnegação em si mesma.
“Ah, eu gostaria muito mas eu sou muito ocupado! Infelizmente não posso praticar o Zen, pois isso demandaria mais tempo do que eu teria para oferecer...”
Será?
Será mesmo possível que não consigamos encontrar sequer um tempinho para nos oferecermos a ajudar uns aos outros – a Sangha? Será mesmo possível que eu tenha tão pouco para oferecer que eu não possa partilhar?
Mais ainda, será que não tenho esse tempo para mim? Para trilhar um Caminho que, supostamente, acredito e assumo como meu?
Ou, ainda, se fizermos uma autoanálise mais profunda, poderemos até alcançar a “terrível” constatação de que nossos interesses com a prática são meramente individualistas.
Teríamos esquecido de que somos todos uma única vida?
A sociedade em que vivemos nos obscureceu para essa Verdade?
Ora! Mas a sociedade em que vivemos não é feita por nós mesmos? Não é, senão, o reflexo de nós?
Não fosse assim, qual o sentido daquilo que o iluminado Mahatma Gandhi pregava: sejamos, nós mesmos, a mudança que queremos ver no mundo!?
Praticar o Zen é encontrar-se... É perder-se para encontrar-se em outro lugar, mais além daquilo que supúnhamos ser, estar.
A alegria da prática está em praticar simples e diligentemente, com o único intuito de nos conhecermos. Só assim conheceremos o mundo todo, posto que somos parte dele. Parte dessa teia de joias iluminadas interconectadas. Intersomos.
Reconhecer isso é a essência dessa prática.
Ir além de nosso ego, da mesquinhez de nós mesmos, para encontrarmo-nos unos com tudo o que existe e para além do que pensamos ou queremos ou, ainda, imaginávamos que seria a busca espiritual.
Encontrarmos o sagrado, não fora, mas em nós mesmos. Em nossa própria prática, em nossa própria vida, na vida da Terra e de tudo o que nela há...
Não através de pantomimas espirituais ou rebuscados rituais meramente espetaculosos, mas da prática da gratidão por aquilo que já possuímos em nós, em nossa essência, bem como àquilo que nos foi ensinado, transmitido, por aqueles que trilharam o Caminho antes de nós.
Prática iluminada... búdica... Buda!
Sem nada a perder, sem nada a ganhar... Sem nada esperar.
Apenas prática incessante e desinteressada daquilo que é.
Prática das três joias – Buddha, Dharma e Sangha –, sem eleger prioridades. Sem escolher qual delas praticar mais ou menos... Praticar a completude do Zen.
Será possível entrar nesse rio, nessa correnteza, e mergulhar sem que nos molhemos?
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